Manual de conduta para jogadores do FC Porto
Nortada' do Miguel Sousa Tavares
Automóveis, penteados e tatuagens ocupam cabeça dos jogadores.
Hoje, você tem vinte anos e é milionário. Mas a vida não vai ser sempre assim. Se for inteligente, você saberá tirar partido dos seus tempos livres, em lugar de se dedicar ociosamente às três coisas que hoje ocupam em exclusivo a cabeça dos jogadores de futebol: automóveis de luxo, penteados e tatuagens.
Agora, que estamos naquela época do ano em que desaguam no Porto levas de novos jogadores de futebol destinados ao FCP— quase todos estrangeiros, sul-americanos e imberbes — deixo-lhes aqui alguns conselhos de comportamento que, se eu mandasse, lhes faria entregar no aeroporto:
Livre-se de chegar ao FCP a pensar ou a dizer que já está a almejar mais altos voos (como ainda ontem vi o Leandro Lima — que nem sequer ainda chegou — a afirmar). Primeiro, porque os Chelsea, Manchester United e Barcelona não compram todos os jogadores bons do planeta, mas apenas um número restrito dos verdadeiramente excepcionais. Segundo, porque, ao chegar ao FCP, você já está num grande da Europa. É verdade que há, pelo menos, uma dúzia de clubes maiores na Europa a nível financeiro, mas não há sequer uma dúzia que lhe dê as condições e o prestígio que o FCP lhe pode dar.
O FCP foi 19 vezes campeão de Portugal, duas vezes campeão da Europa e duas vezes campeão do Mundo. Você ainda não foi nada. É uma honra para si vestir esta camisola e estar ao serviço deste clube. Comece pois, por ser humilde, se quiser vir a ser verdadeiramente grande.
O FCP tem mais de cem anos de história: ainda o seu avô não tinha nascido e já as cores azul e branca (homenagem à antiga e lindíssima bandeira nacional) jogavam futebol. Visite a sala de troféus, fale com os funcionários mais antigos, com velhas glórias do clube, com adeptos de várias gerações. Aprenda a história do clube para aprender a respeitá-lo.
Como todos os clubes, também o FCP nasceu e vive graças à dedicação dos seus sócios e adeptos. Nunca confunda quem lhe assina os cheques com quem lhe paga: o seu patrão é o FC Porto e o FC Porto é dos seus sócios. É a eles, antes de mais, que você deve respeito e dedicação — a mesma que eles dão ao clube.
Desde que foi inaugurado, o Estádio do Dragão tem a mais elevada média de assistências em Portugal. No último campeonato, a média foi de 40.000 espectadores por jogo. Não há muitos clubes no Mundo que se possam gabar disto, não há nenhum em toda a América do Sul. Isso dá-lhe bem a noção do amor ao futebol e da dedicação ao clube dos seus adeptos. E deve dar-lhe também a noção da sua responsabilidade em campo. Nunca esqueça, por exemplo, que o público que paga bilhete e se desloca ao estádio , fá-lo para assistir e vibrar com 90 minutos de futebol, e não apenas com 30, 50 ou 70: se estamos a ganhar por dois ou três a zero, isso não o dispensa nem à equipa de continuar a jogar o melhor que sabe pelo prazer do público.
Você vai poder jogar no mais bonito estádio do Mundo, vai poder treinar num centro de treinos moderno e impecável onde nada falta, vai estagiar em hotéis de luxo, viajar em autocarro de luxo e 1.ª classe de aviões fretados, vai ter técnicos, médicos, enfermeiros, pessoal de apoio ao seu serviço 24 horas por dia: nada o dispensa de não dar o máximo sempre. Devem ser raríssimas as actividades e empresas em todo o Mundo em que alguém disponha das mesmas condições de trabalho que o FCP lhe proporciona. Faça por merecer o privilégio.
Você faz aquilo de que mais gosta e tem a sorte de poder fazer, profissionalmente, o que milhões de miúdos em todo o Mundo pagariam para poder fazer. Você é principescamente pago para jogar futebol ao serviço de um clube. Não tem desculpas para não encharcar essa camisola, nos treinos e nos jogos.
Jamais venha com a desculpa de que está cansado porque jogou ao fim-de-semana para o campeonato e a meio da semana para a Liga dos Campeões. Esse é o sonho de qualquer jogador e, se você é bom profissional, tem obrigação de estar preparado para isso e muito mais. Mesmo que oiça essa desculpa ao próprio treinador, não alinhe nela. Os grandes jogadores das grandes equipas sabem que o contrato é claro: são anos de glória e de fortuna, em troca de sacrifícios e trabalho árduo. Para descansar, pode esperar pelos 30 anos. E, se não gosta, pode sempre escolher: há outras profissões de menor desgaste físico, em que se pode fazer noitadas, fumar e beber. Mas têm horários de trabalho de 40 ou mais horas, recebe-se cinquenta ou cem vezes menos e não há multidões a aplaudir o nosso trabalho.
Hoje, você tem 20 anos e é milionário. Mas a vida não vai ser sempre assim. Se for inteligente, você saberá tirar partido dos seus tempos livres, em lugar de se dedicar ociosamente às três coisas que hoje parecem ocupar em exclusivo a cabeça da maioria dos jogadores de futebol: automóveis de luxo, penteados e tatuagens.
Em vez disso, procure crescer, aprender, cultivar-se, interessar-se pelas coisas. Além do mais, quanto mais mundo e conhecimentos você adquirir, mais inteligente ficará e hoje o futebol que se joga depende muito da inteligência que os jogadores são capazes de integrar no seu jogo.
Comece, por exemplo, por se interessar e aprender coisas sobre a cidade do Porto, onde terá de viver nos próximos anos. Descubra a história da cidade que deu nome a Portugal, descubra a sua arte, os seus costumes, os seus restaurantes, os seus monumentos, a história do vinho do Porto, a cultura da sua gente. E o mesmo em relação ao seu novo país de acolhimento. Deixe de lado o estereótipo do jogador que diz que é muito caseiro e que só faz vida treino-casa-estágio. Você tem metade dos dias livres: aproveite-os para fazer qualquer coisa de útil.
Se realmente quer chegar ao topo, deixe as tardes de volta da Playstation, como se fosse um miúdo de doze anos, e ponha-se a aprender línguas, por exemplo: inglês, espanhol, italiano (e português, claro) vão-lhe dar muito jeito para o futuro, dentro ou fora do futebol.
Contribua para afastar de vez aquela imagem do jogador de futebol que só sabe falar com os pés. Aprenda a exprimir-se como uma pessoa normal, aprenda a falar com a imprensa e, mesmo quando as perguntas são sempre iguais e desinteressantes, como tantas vezes são, procure dar respostas que tenham algum conteúdo e algum interesse para os adeptos. Se só sabe responder por lugares-comuns e banalidades, mais vale então ficar calado: poupa a sua imagem.
Quando entrar em campo, pense que faz parte de uma equipa e que está ali para dar a vitória ao seu clube. Lá em cima, na bancada, nós não queremos saber se o seu carro custou 123.000 euros, como um dos três carros do Cristiano Ronaldo; não queremos saber se o seu penteado é ainda mais interessante que o do Miguel Veloso, as suas tatuagens mais sexys que as do Beckham e o seu look ainda mais in(?) que o do Abel Xavier. Nem queremos saber se você, como dizia o Valdano, é capaz de fintar três jogadores dentro de uma cabina telefónica — se depois não dá com a saída. Quando estiver em jogo, deixe de se preocupar consigo próprio: use a inteligência a par do talento, levante a cabeça, olhe para o jogo e faça o que for melhor para a equipa, em cada momento.
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